A verdade importa
O que acontece quando um movimento político rejeita a apuração de fatos e abraça o tic-tac
A reação negativa da direita brasileira a um comentário do jornalista Paulo Figueiredo levanta algumas reflexões sobre o movimento político como um todo e suas perspectivas para o futuro.
Figueiredo, além de jornalista, também é, abertamente, um militante político. Detentor de contato com membros do governo americano, fez campanha pelas sanções ao ministro Alexandre de Moraes e diz ter atuado pessoalmente para chamar a atenção das autoridades dos EUA para o falso registro de entrada de Filipe Martins no país. Martins, ex-assessor de Jair Bolsonaro, foi famosamente preso em 2024 por ordem do ministro Alexandre de Moraes (STF) em razão dessa viagem aos EUA, que nunca aconteceu.
No dia 10, o governo dos EUA publicou nota oficial declarando que Martins não tinha entrado no país naquela data e que estava sendo conduzida investigação sobre o registro falso nesse sentido nos órgãos de imigração. A nota foi alvo de euforia em círculos da direita, que especulavam que o próprio ministro Moraes poderia estar, de alguma forma, ligado a uma fraude no registro de entrada e se tornar alvo criminal nos Estados Unidos.
Mas, mais tarde, Figueiredo (que diz ter tido acesso a informações não reveladas ao público) disse em vídeo que “pode ser que tenha havido um erro” no registro em vez de uma fraude deliberada – o que, em tese, afastaria responsabilidade criminal do ministro Alexandre de Moraes. O comentário foi respondido de forma dura, entre outras pessoas, pelo advogado de Martins, levando a um bate-boca dos dois em live e uma racha na base de apoiadores.
“Você sabia que não ia ajudar em nada trazer esse argumento”, acusou o advogado, cobrando Figueiredo por alegadamente prejudicar o seu cliente.
“Eu não estou aqui para ajudar, eu não sou advogado”, rebateu Figueiredo. “Eu sou jornalista, eu estou aqui para trazer a verdade para o público.” E completou: “Eu não questiono o seu trabalho como advogado; não questione o meu como jornalista.”
De fato, a lealdade, que é o valor central da ética advocatícia, é completamente estranha à ética jornalística. Ao contrário: o jornalismo valoriza a independência.
Muita gente na direita brasileira lamenta a suposta falta, hoje, de jornalistas imparciais interessados na verdade e diz que os que estão aí hoje só estão interessados em vender narrativas.
No entanto, as pessoas às vezes não sabem o que elas próprias querem. E a prova disso é quando alguém é, alternadamente, jornalista e militante político e é mais criticado quando age como jornalista. O comportamento do público fala mais alto do que as suas preferências anunciadas.
Goste-se ou não dele (e ele tem detratores na esquerda e na direita), naquele momento, Paulo Figueiredo fez o que um jornalista faria.
Tanto é que outro jornalista de formação, Samuel Pancher, com perfil totalmente diferente, formulou a mesma hipótese (a de que o falso registro pode ter sido por erro, e não por intenção). Também não foi bem recebido por parte do público e por figuras públicas da direita. Recebeu insinuação de que só podia estar agindo como militante político e recebeu até ameaça de processo. A possibilidade de que ele estivesse tentando apurar fatos como um jornalista e de que isso pudesse atender ao interesse público – e não só a interesses particulares – não foi nem sequer considerada.
É verdade que jornalistas também cometem erros, como o próprio Filipe Martins poderia atestar melhor do que ninguém. A própria entrada imaginária de Martins nos Estados Unidos foi famosamente noticiada por uma matéria jornalística que, obviamente, se revelou falsa (e depois, em consequência, teve a manchete modificada). Mas o próprio ato de criticar jornalistas por erros de apuração e publicação de afirmações inverídicas já embute adotar a apuração da verdade como valor. Jornalistas devem ser criticados quando erram, não quando acertam.
O ovo e a galinha
A direita muitas vezes critica o jornalismo tradicional por ser maciçamente de esquerda, e usa esse fato como motivo para rejeitar o jornalismo. As estatísticas corroboram a afirmação. Mas quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? O público rejeita o jornalismo tradicional por ele ser de esquerda, ou o jornalismo tradicional é de esquerda por ser rejeitado pelo público de direita? As estatísticas também apontam que o público de esquerda consome mais o jornalismo tradicional.
Como eu próprio não sou de esquerda, tenho muita fé no poder do mercado em refletir as demandas da sociedade. Acredito que ao menos uma parte do fenômeno seja consequência da falta de demanda por jornalismo tradicional no público da direita.
A reação da direita ao comentário de Figueiredo e às repercussões subsequentes foi um sinal nesse sentido. Mesmo entre quem tentou contemporizar ou defender o Paulo Figueiredo, não vi uma alma (além dele próprio) defendê-lo porque estivesse fazendo papel de jornalista, e porque exista qualquer tipo de interesse em descobrir a verdade (intrínseco ou instrumental). Em vez disso, quem saiu em defesa de Figueiredo preferiu ressaltar a sua condição de militante político. Enfatizaram a lealdade de Figueiredo à causa ou fizeram apelo por união, criticando os críticos por supostamente “dividir a direita”.
Em outras palavras, o apelo de Figueiredo aos valores jornalísticos não pareceu fazer eco junto ao público.
O problema de perder o contato com a realidade
Até aí, tudo bem: as pessoas podem preferir futebol ou novela, e podem preferir consumir entretenimento político sensacionalista ou apuração rigorosa dos fatos.
O problema é que a realidade não é opcional, e algumas vezes ignorá-la pode gerar consequências. Se você estiver dirigindo um carro, pode escolher ignorar, por algum tempo, que há um muro de tijolos na sua frente e fingir que é uma cortina de flores, mas a realidade vai se impor logo.
Por isso, mesmo se as pessoas não tiverem nenhum interesse intrínseco pela verdade e só estiverem interessadas em militar por interesses, apurar a verdade é importante.
O próprio Paulo Figueiredo tentou usar esse argumento para convencer os militantes políticos da importância de operar com a verdade: “Se todos nós entrarmos na narrativa, de cabeça, de que houve uma fraude dolosa e, no final das contas, documentos vierem a público mostrando que não houve essa fraude dolosa, vai ficar todo mundo com cara de tacho e perder completamente a credibilidade.”
De fato, acreditar em inverdades é receita para erros de estratégia. Por exemplo, se você achar que o seu grupo político perdeu a reeleição porque perdeu apoio popular e ganhou menos votos (como todas as evidências indicam que tenha acontecido em 2022), a solução será uma: identificar qual parte da estratégia ou do comportamento contribuiu para a rejeição e mudar. Já se você escolher acreditar, solipsisticamente, que o seu grupo político já ganhou essa luta, teve 80% do voto popular e só perdeu a eleição porque houve fraude, a estratégia natural será dramaticamente diferente.
E pode causar prejuízos reais, como, individualmente, convencer as pessoas a fazer vandalismo em protesto contra a suposta fraude e terminarem presas. Ou, no coletivo, convencer o grupo a manter os mesmos comportamentos que repeliram os eleitores antes (já que você acha que 80% dos eleitores já estão encantados com você e que você não precisa fazer nada) e, em tese, continuar a repelir os eleitores, tornando potencialmente mais difícil ou até decisivamente impedindo uma vitória na próxima eleição.
Ou, como o Paulo Figueiredo apontou, se você insistir em inverdades ou especulações infundadas, a perda de credibilidade pode ser um prejuízo em si.
Por exemplo, existem muitas denúncias legítimas a serem feitas contra a atuação do STF ou do TSE durante o estado de sítio judicial que já dura 6 anos. Mas, se os mensageiros dessas críticas legítimas as apresentarem no mesmo balaio que outras críticas fantasiosas e mais chamativas, o caráter chamativo pode até render muito engajamento para quem as faz (e muitas vezes vive disso, no caso de vários influenciadores); mas esse mesmo caráter chamativo pode distrair a atenção das críticas verdadeiras.
E o público em geral nem sempre é tão crédulo quanto o subgrupo que dá engajamento para o influenciador: se o público souber enxergar que as críticas chamativas são falsas, isso retira a credibilidade de todas. E quem se ferra é o resto das pessoas, que não lucra com a atenção, mas sofre com os fenômenos verdadeiros cuja denúncia passa a entrar em descrédito.
Mas o apelo de Paulo Figueiredo não pareceu convencer os ouvintes. O fato de determinado grupo político estar em estado coletivo de negação da importância de apurar a realidade é um fato útil de se registrar, inclusive para prever os desenvolvimentos futuros.



Perfeito, a busca pela verdade tem que se impor