A verdade sobre as urnas eletrônicas
Desconfiança não foi plantada por políticos; políticos é que se aproveitaram de narrativa popular. O que isso significa para a demanda por censura
Em 2014, o PSDB contestou o resultado das eleições de 2014, nas quais o seu candidato, Aécio Neves, saiu derrotado. Motivo alegado: falta de confiabilidade das urnas eletrônicas.
Na época, ninguém concebia que dizer isso fosse sequer ilegal. Hoje em dia, existem até mesmo exilados políticos que tiveram que se retirar do Brasil por expressar o mesmo sentimento, vide o podcaster Monark – embora a lei tenha permanecido a mesma.
Por que pessoas estão sendo perseguidas por dizer que as urnas não são confiáveis? Vou abstrair do fato de isto é ilegal e me limitar à alegação estritamente política dos que defendem tal perseguição.
A alegação é de que existiria uma estrutura coordenada de indivíduos com o objetivo comum de provocar descrença na população quanto às urnas. Esta suposta “organização criminosa” semearia a desconfiança para colher frutos políticos em benefício próprio. Dando nome aos bois, esta estrutura coordenada seria o grupo político bolsonarista.
E em 2014 era o quê?
Os defensores desta tese nunca fazem menção ao que aconteceu em 2014.
Na época, o grupo político bolsonarista nem sequer existia. O próprio Bolsonaro era um deputado exótico do Congresso que não era levado a sério como presidenciável – na época, as manifestações de rua verde-amarelas se reuniam, em vez disso, para apoiar Aécio Neves para a presidência.
E, no entanto, a boataria de fraude eleitoral já estava aí. O PSDB não só apresentou petição ao TSE levantando suspeitas quanto às urnas, como de fato conseguiu auditoria oficial e, no ano seguinte, publicou relatório condenatório. O texto foi resumido assim no site do PSDB: “Auditoria do PSDB nas urnas eletrônicas mostra que sistema eleitoral brasileiro é vulnerável”.
Afinal, a narrativa anti urnas eletrônicas foi semeada pelos bolsonaristas ou pelo PSDB? Nem um, nem outro.
De onde realmente vem a narrativa
Lendo a petição do PSDB, algo curiosíssimo exsurge dali: embora o partido estivesse formulando o pedido em seu nome, ele a todo momento deixa claro que a narrativa não parte dele.
O partido chega a insinuar (seja por sinceridade, seja por mera etiqueta) que não duvida por um segundo da lisura das urnas, e, apesar disso, está fazendo o pedido de auditoria para aplacar inquietações que são alheias. Diz o partido: “É justamente com o objetivo de não permitir que a credibilidade do processo eleitoral seja colocada em dúvida pelo cidadão brasileiro que nos dirigimos neste momento à presença de Vossas Excelências”.
Se não vêm do partido, de onde vem, então, a desconfiança quanto às urnas? O partido responde logo no início da petição: “Nas redes sociais os cidadãos brasileiros vêm expressando, de forma clara e objetiva, a descrença quanto à confiabilidade da apuração dos votos.”
Ora, ora. Então não foi uma estrutura político-partidária organizada que semeou desconfiança quanto às urnas. Foi justamente o contrário: o sentimento brotou espontaneamente do falatório popular nas redes sociais, e a estrutura partidária apenas correu atrás, fazendo o que políticos fazem de melhor e tentando surfar na onda popular para obter dividendos políticos.
E o bolsonarismo nem mesmo foi o primeiro grupo a fazer isso: os tucanos chegaram lá antes.
Tampouco foram os tucanos o primeiro grupo político a encampar a pauta: já houve, pelo menos, três projetos de lei aprovados no Congresso prevendo voto impresso. O primeiro deles foi em 2002, quando nem sequer existiam redes sociais; foi depois revogado pelo próprio Congresso. Novos projetos instituindo voto impresso foram aprovados em 2009 e 2015, mas, desta vez, em ambos os casos, foram derrubados pelo STF. O tribunal alegou razões como o sigilo do voto e os gastos da medida, que os ministros consideravam excessivos.
Uma verdade inconveniente
Seja por bons ou por maus motivos, ninguém quer ser visto como estando contra o povo. É o inimigo mais temível que anda sobre a terra.
Em vez disso, quando alguém percebe que o povo está do outro lado da trincheira, a reação comum é conjurar um inimigo imaginário, que estaria por trás do povo controlando as cordas, como que lidando com marionetes. O inimigo não é o povo, é uma “milícia digital” organizando uma “rede de desinformação” para enganar o povo. Perdoe-o, porque não sabe o que faz.
Parte disso é estratégia de marketing, mas outra parte é autoengano: parte do motivo para o povo ser um inimigo tão indesejável é porque ele é vasto e amorfo demais para ser eficazmente enfrentado. Perceber que o inimigo é esse produz desespero, porque põe em dúvida a capacidade de levar a luta adiante. Melhor convém fingir que não percebeu.
Se toda a desconfiança popular sobre urnas é causada por meia dúzia de gatos pingados que semeiam “desinformação”, resolver é fácil: basta derrubar meia dúzia de contas em rede social, que a desconfiança se esvai no dia seguinte. Mas e se a relação for a contrária? E se a meia dúzia de gatos pingados tiver chegado aonde chegou, com milhões de seguidores, justamente porque soube captar uma demanda popular por determinados conteúdos? Entre eles, o assunto urnas eletrônicas. Nesse caso, o que fazer?
Alguém poderia dizer que a solução seria simplesmente ceder e aprovar o voto impresso, como os populares demandam. Mas isso apenas postergaria o problema, porque, em maior ou menor grau, qualquer sistema eleitoral pode ser alvo de desconfiança.
Se é que há solução (e não é dado que haja), ela passa por um caminho muito mais difícil, que é recuperar a confiança do público. Punir quem expressar desconfiança é um substituto apenas imperfeito, porque reprime apenas a expressão da desconfiança, e não o sentimento em si. Ao contrário, é até possível que o efeito seja contraproducente; como diz certa frase, a rainha que proíbe chamá-la de feia não inspira confiança na própria beleza.