Piadas devem ser proibidas se "morre gente por causa disso"?
Critério ruim proposto por comediante do Porta dos Fundos poderia resultar na sua própria prisão
Quando se pergunta até onde deve ir a liberdade, a teoria mais popular para responder à pergunta é a do inglês John Stuart Mill: seria defensável reprimir a ação de alguém apenas quando esta ação causasse dano a outra pessoa.
No entanto, esta teoria, chamada de “princípio do dano”, não é suficiente.
Veja o caso da liberdade de expressão, por exemplo. Se o princípio do dano não vier com o complemento necessário, pode degringolar em absurdos, como o teste proposto pelo comediante Antonio Tabet, do Porta dos Fundos, em discussão com o apresentador Monark em 2021: “Morre gente por causa disso?”
Era um critério para justificar a validade da censura politicamente correta. Nas palavras de Tabet: “O cara que fala ‘Gay, pra mim, é um pecado de Deus’ [...] Tem gente que apanha e morre por causa disso. Então esse tipo de discurso tem, sim, que ser cerceado.”
O ex-comediante do CQC Felipe Andreoli, certa vez, ecoou slogans progressistas e afirmou que “o que era considerado piada, hoje sabemos que mata”. Logo, segundo o Teste de Tabet, piadas devem ser criminalizadas.
Pois bem. Meros três anos antes do comediante enunciar o Teste de Tabet, o então candidato Jair Bolsonaro tinha sido esfaqueado por um ex-filiado ao PSOL, Adélio Bispo, em tentativa de assassinato que deixou sequelas.
A 3ª Vara Federal de Juiz de Fora citou o engajamento político de Bispo em redes sociais e declarou que o réu era movido por repúdio a Bolsonaro e pelo desejo de impedir sua eleição e os eventuais males dela decorrentes. Em interrogatórios, Bispo enunciou a respeito de Bolsonaro caracterizações que coincidiam com as normalmente feitas pela militância de esquerda, sugerindo que tivesse sido influenciado por narrativas alheias. Além disso, fez afirmações como a de que o candidato supostamente defenderia “o extermínio de homossexuais, pobres, negros e índios”.
Acontece que o próprio Antonio Tabet, há anos, faz manifestações públicas de ódio a Bolsonaro em redes sociais. Sem citar o nome do alvo, já o chamou de “assassino”, “demônio” e “canibal”. Um dos descritores que mais usou foi “genocida”, fazendo referência a um ato definido em convenções internacionais como envolvendo a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
Ou seja, pelo teste de Tabet, o próprio enunciador do princípio deveria ser preso por suas falas, já que “morre gente” (ou pode morrer) por causa das mesmas ideias e sentimentos de ódio que ele propaga. E não se trata aqui de especulação, porque há provas concretas e judicialmente reconhecidas disso. Provavelmente mais até do que para as falas do tipo que Tabet deseja proibir.
Certamente o próprio Antonio Tabet não defenderia que ele próprio fosse preso por suas falas, então é preciso adotar outro critério.
Qualquer outro cidadão também não vai ter dificuldade de enxergar o risco que há à liberdade quando qualquer um pode alegar danos imaginários vindos da fala do outro para calá-lo. Não há limite para a imaginação.
Por isso, para justificar a criminalização da fala, não deve ser suficiente alegar “dano”: ele precisa, no mínimo, ser suficientemente provável para que a fala mereça ser proibida.
Mas nem isso é suficiente. Vamos supor que, na investigação judicial, tivesse sido provado, acima de dúvida, que Adélio Bispo de fato tivesse tido a ideia de matar Bolsonaro depois de ouvir críticas políticas de Antonio Tabet expressando asco contra o então candidato e especulando sobre o que poderia acontecer se fosse eleito. Alguém em sã consciência defenderia punir Tabet por essa fala, apenas pelas conclusões que um louco tirou dela?
Não. Nem todo mundo é tão insensato.
Para uma fala ser punida como apta a estimular crimes de terceiros, o mínimo do mínimo é que o falante tenha defendido diretamente a prática do ato ilícito objeto de preocupação – por exemplo, exortando as pessoas a esfaquearem um candidato, ou invadirem e depredarem um prédio público.
(Cabe aqui abrir parênteses para apontar o contraste entre estes dois exemplos: que eu saiba, ninguém nunca abriu inquérito criminal contra cidadãos brasileiros por terem “incitado indiretamente”, com suas críticas políticas, à tentativa de assassinato contra Bolsonaro. Em forte contraste, há múltiplos inquéritos criminais que atualmente são ou já foram movidos por cidadãos brasileiros contra meras críticas políticas que constituiriam “incitação indireta”, seja para tentar lhes atribuir responsabilidade a posteriori pelos atos de depredação de 8 de janeiro de 2023, seja para acusá-los de darem causa a ilícitos imaginários, que nem sequer aconteceram e cuja natureza nem se sabe qual seria.)
Nos Estados Unidos, vai-se ainda mais longe: nem mesmo a incitação direta é considerada suficiente para punir uma pessoa criminalmente. É necessário que a incitação seja para o cometimento iminente do ilícito, isto é, logo depois da fala: imminent lawless action.
O diplomata Gustavo Maultasch explica a lógica, no livro “Contra toda censura”: “se há uma distância temporal entre o discurso e a realização da consequência, a relação direta (o nexo causal) entre causa e consequência fica difícil de estabelecer”. Isto é, diminui a probabilidade de que o dano seja realmente em decorrência da fala. No meio do caminho, múltiplos outros fatores intervêm.
Para não deixar dúvidas de que o raciocínio era esse, a Suprema Corte americana, no mesmo julgamento de 1969 (Brandenburg v. Ohio) que estabeleceu o critério do imminent lawless action, estabeleceu, junto dele, um requisito adicional: mesmo a incitação a ilícito iminente só é punível se for considerado, nas circunstâncias, suficientemente provável que a fala realmente tivesse o potencial de levar ao cometimento do ato ilícito. Sem isso, a fala não é punível.
Então, como critério razoável, o limite à liberdade de expressão deve ser este: quando a fala tiver o potencial de produzir dano a outras pessoas, desde que esse dano seja altamente provável nas circunstâncias, o que implica estar próximo na cadeia de causalidade.