O Brasil está pior que a Venezuela?
Sob silêncio da imprensa, suspensão de contas em redes sociais coloca o Brasil na vanguarda da censura
É clichê na direita brasileira o alerta de que o Brasil pode “virar uma Venezuela”. (Antigamente, era Cuba.)
Mas a juíza aposentada Ludmila Lins Grilo, exilada nos Estados Unidos e com todas as redes sociais censuradas no Brasil, fez uma ousada afirmação: “Em alguns aspectos, o Brasil já está pior do que a Venezuela. O ataque à liberdade de expressão nesse nível não acontece nem na Venezuela. Acontece na China.”
Me lembrei da afirmação da juíza ao me deparar com o caso de María Corina Machado, considerada a principal opositora do presidente Nicolás Maduro na Venezuela. Ela foi recentemente impedida pelo Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela (TSJ) de concorrer à presidência contra o ditador venezuelano.
No dia 6 de março, Lula debochou indiretamente dos protestos de María Corina contra essa decisão, dizendo: “Fui impedido de concorrer às eleições de 2018; ao invés de ficar chorando, indiquei um outro candidato [Fernando Haddad], que disputou as eleições”.
Até mesmo os setores da imprensa que têm sido mais favoráveis a Lula reagiram duramente contra a fala, dizendo que ele estava se colocando ao lado de uma “ditadura”. Esta imprensa considera o TSJ venezuelano como órgão aparelhado pelo regime de Nicolás Maduro para atuar contra a oposição. A oposicionista em questão é considerada vítima de repressão política ilegítima.
Fui pesquisar sobre María Corina Machado. Encontrei tuítes dela fazendo ataques diretos e acusações contra o TSJ e o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano. Como exercício, imagine políticos de oposição brasileiros postando no Twitter frases idênticas contra o STF e o TSE:
“Enfrentamos un sistema perverso e o CNE é um de seus algozes” (15/02/2023)
“Nem maquiagem puseram. Não são magistrados, nem são TSJ. É um instrumento de crime para controle e submissão. Cruamente nu.” (26/04/2022)
“Sim, podemos vencer, mas todos sabemos do que a CNE é capaz. É por isso que insistimos em ter primárias impecáveis, sem esse órgão do regime, para podermos construir confiança e força entre nós. Com essa força poderemos enfrentar a armadilha da CNE e este sistema em 2024” (24/02/2023)
“É preciso colocá-los contra a parede! Vamos nos medir, não há desculpas. Sem CNE, sem TSJ, sem Plano República, voto manual e com voto dos venezuelanos no exterior.” (14/07/2022)
María Corina Machado também tem outras falas defendendo um sistema de “voto manual” em vez de se usarem as “máquinas”, insinuando que o sistema eleitoral venezuelano não seja confiável em relação à possibilidade de fraude eleitoral.
Todas essas publicações estão no ar na rede social X, assim como a conta da política venezuelana, ao menos no Brasil. Pesquisei e não achei nenhuma referência a ela ou outro oposicionista ter as redes sociais bloqueadas na Venezuela. O relatório da Freedom House sobre liberdade de internet no país para o ano de 2023 não cita nenhum caso do tipo.
Em contraste, o parlamentar mais votado do Brasil, de oposição, já teve as redes sociais completamente bloqueadas pelo Poder Público mais de uma vez, assim como dezenas (centenas?) de outras figuras proeminentes, políticos e não-políticos.
Se depender da nossa imprensa, isso é absolutamente normal. Quase não se ouve crítica; ao contrário, às vezes se ouvem elogios efusivos. A crítica, em vez disso, se dirige às pessoas que estão sendo alvejadas. Em vez de assumir o seu papel de vigiar o poder, a imprensa está se colocando ao lado dele, como se fosse uma mão longa do regime vigente, somando forças para a mesma tarefa em outra frente.
Infelizmente, não seria a primeira vez que a imprensa desempenha esse papel no país. No regime militar, era parecido.
Mas, quando o assunto é outro país, o tom muda. O governo vizinho, que é visto com maior distanciamento (e, não menos importante, não exerce poder nas nossas terras) é referido como “ditadura”, sem meias-palavras. Os atos das instituições de Estado contra seus detratores são considerados presumidamente ilegítimos até prova em contrário; e esses indivíduos são chamados de heróis que “criticam” as autoridades, em vez de criminosos que as “atacam”.
Quem dera a imprensa brasileira zelasse pelo próprio país tanto quanto pela Venezuela.