O fio comum da censura no Brasil é atingir quem fala mal de autoridades
Discussões sobre "defesa da democracia" são fumaça
O ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula, Paulo Pimenta, jogou a toalha. Em vez de fazer o que o título do cargo sugere e focar numa estratégia de comunicação para melhorar a imagem do governo, ele preferiu acionar a Polícia Federal. Pediu medidas contra quem estava criticando o desempenho do governo e de outras autoridades no enfrentamento da calamidade no Rio Grande do Sul.
Como estamos falando de alguém que é oficialmente responsável pela comunicação do governo, a gente logo pensaria que o objetivo dele é… cuidar da imagem do governo. No entanto, ele negou isso no ofício que enviou ao Ministério da Justiça, dizendo que o objetivo era outro. Depois de citar supostas fake news que estavam circulando, ele disse:
“Destaco com preocupação o impacto dessas narrativas na credibilidade das instituições como o Exército, FAB, PRF e Ministérios, que são cruciais na resposta a emergências. A propagação de falsidades pode diminuir a confiança da população nas capacidades de resposta do Estado, prejudicando os esforços de evacuação e resgate em momentos críticos. É fundamental que ações sejam tomadas para proteger a integridade e a eficácia das nossas instituições frente a tais crises.”
Então, supostamente, a censura é para ajudar nos esforços de salvamento nas enchentes. Como? Indo atrás de quem atinge a imagem das nossas autoridades.
De alguma forma misteriosa, ter a imagem ruim os atrapalha a salvar as pessoas.
A lógica soa familiar. Em 2019, o então presidente do STF disse que era necessário abrir um inquérito para preservar a independência do Judiciário contra tentativas de interferência externa. Como? Indo atrás de quem atingia a imagem das nossas autoridades. A "tentativa de interferência" constituía justamente em falar mal das autoridades quando não faziam o que essas pessoas queriam.
Em 2020, o discurso era a urgência de salvar a democracia contra uma tentativa de instaurar um regime autoritário. Como? Indo atrás de quem atinge a imagem das nossas autoridades. Inclusive com hashtags. Seria o primeiro passo para a ditadura, "descredibilizar as instituições", tudo conforme está no livro do Levitsky.
Em 2022, o grosso da censura no Brasil levantada pelo Congresso americano era uma censura contra quem “atingia a credibilidade do sistema eleitoral” (essa era a justificativa). Algo que pouco (ou nunca) se diz é que o “sistema eleitoral” incluía o próprio TSE, órgão de onde emanavam as ordens de censura. Isso porque o TSE é quem cuida da votação via urnas eletrônicas. Assim, para qualquer acusação genérica de “fraude eleitoral” que se fizesse, os alvos implícitos inevitáveis da acusação, ainda que inominados, eram os ministros do TSE. (Em alguns casos, os alvos chegavam inclusive a ser chamados pelo nome, como é o caso de numerosos tuítes do PCO. Um deles fez o alvo reagir e ordenar a censura completa dos perfis do PCO – tornando-se, assim, juiz de um crime do qual ele seria a própria vítima.)
Ou seja, até mesmo nessa situação, em que o objeto ostensivo de proteção eram “as urnas” e a democracia, as falas censuradas eram falas contra as autoridades do órgão de onde emanava a censura. Isso parece ser o único fio comum que une todos os casos do Inquérito do Fim do Mundo num mesmo inquérito (o nome, aliás, é justamente porque o procedimento une casos tão díspares).
Uma aparente exceção seria a censura ao Telegram por críticas ao PL 2.630. No entanto, a jornalista Daniela Lima ajuda a elucidar o mistério: falando do projeto, ela disse que “O ministro Alexandre de Moraes [...] se dedicou no ano anterior a formular uma proposta, que foi entregue por ele em mãos [...] ao Congresso.”
A julgar pela entonação enfática da jornalista (que provavelmente tem acesso direto ao ministro), fica parecendo que o ministro enxergava o projeto quase como um filho ou como uma extensão de si próprio (como seria normal para qualquer um de nós).
A ser verdade, o caso Telegram seria, então, uma exceção que comprova a regra: todos os casos do Inquérito do Fim do Mundo são investigados porque são ofensas, ainda que reflexas, à esfera individual de ministros do STF.
Com a troca de governo em 2023, numerosas outras autoridades passaram a reivindicar o mesmo para si. Conforme o ministro Paulo Pimenta: “Exército, FAB [Força Aérea Brasileira], PRF [Polícia Rodoviária Federal] e Ministérios” do governo Lula.
As autoridades envolvidas mudam e o suposto bem maior que é citado para justificar a censura também muda: “independência do Judiciário”, “Estado democrático de direito”, “democracia”, “integridade do sistema eleitoral”, “esforços de evacuação e resgate”.
Mas 1 elemento permanece constante: as falas serem pouco lisonjeiras às autoridades e órgãos de onde emana a censura.
Isso, aliás, talvez explique a quase ausência de censura estatal, no Brasil, à dita “desinformação” no contexto da pandemia, muito embora a justificativa histérica de “salvar vidas” fosse intensamente explorada, à época, no discurso público dos defensores da censura. Apesar desses defensores tanto implorarem, a censura desejada não veio. Pode ter sido porque, nesse caso, ela não se prestava a proteger a reputação de nenhuma autoridade pessoa-física.
Muito se falava em proteger “as vacinas” contra ataques à sua reputação. A comparação entre vacinas e urnas talvez indique que, no direito brasileiro, objetos inanimados só têm direito à honra tutelado pelo Estado quando são diretamente manejados por uma autoridade com capacidade institucional para demandar ou aplicar censura, e quando a crítica ao objeto implicar crítica a essa mesma autoridade.
Uma distinção analítica que a filosofia faz é entre os elementos acidentais de algo (que podem ou não estar lá, conforme o momento) e os elementos necessários, que estão sempre lá e, por isso, são o que realmente determina a natureza da coisa. Se você se propõe a discutir X, deveria focar nos elementos essenciais a X, e não nos acidentais.
Mas toda a imprensa, os intelectuais e, agora, até os políticos democratas do Congresso americano, ao descreverem o Inquérito do Fim do Mundo, focam exclusivamente num aspecto meramente acidental e circunstancial (ainda que fosse verdadeiro) do inquérito, que é a dita “defesa da democracia” em determinado momento.
É o caso de se perguntar por que não querem discutir a essência do fenômeno de censura brasileiro. Por bom motivo é que não é.
Bravo! Parabéns pelo trabalho.