Por que os Twitter Files merecem atenção
Reportagem revela espionagem forçada de cidadãos, supressão de conteúdo e pesca probatória contra defensores de uma causa legislativa específica
Assim como aconteceu nos Estados Unidos, a versão brasileira dos Twitter Files foi solenemente ignorada pela maior parte da imprensa. E, assim como nos Estados Unidos, surgiram narrativas em coro para defender que não há nada para ver aqui: “É um grande nada.” “São narrativas.” “É tempestade em copo d’água.” “Não há prova nenhuma do que acusam.” “Apenas requentam fatos que já eram conhecidos em documentos oficiais.”
Esta última afirmação até é verdadeira para uma parte do conteúdo revelado, mas vejam que ela contradiz o argumento imediatamente anterior.
Ainda sobre essa última afirmação, posso dizer que estou entre as pessoas na imprensa que mais acompanham o regime de censura brasileiro; e, pelo menos para mim, alguns dos fatos revelados por e-mails de funcionários do Twitter foram, sim, novos.
Não vou comentar todo o conteúdo dos Twitter Files, que daria muito pano para manga; vou focar apenas em duas revelações que são encapsuladas por este trecho, e que foram as que mais me chamaram a atenção, entre todas:
“it seems like the [Supreme Electoral] court wants to identify account handles that would have specifically added certain types of trending hashtags and also somehow reduce engagement of specific content on the platform”
(“parece que o TSE quer a identidade de contas do Twitter que teriam especificamente usado algumas hashtags, e também quer, de alguma forma, que reduzamos o engajamento de conteúdos específicos na plataforma”)
“Só uma sugestão”
Um dos argumentos cínicos apresentados contra trechos como esse foi que “não houve ordem coercitiva, foi só uma sugestão”.
“Só” uma sugestão. Vinda de agentes de Estado com poder coercitivo e regulamentar que podem, discricionariamente, decidir usar contra as plataformas no futuro. Lembre-se de que estamos falando do TSE, que tem poder normativo legítimo previsto pelo próprio ordenamento brasileiro – e isso mesmo pressupondo que aja apenas dentro de suas atribuições; no mundo real, pode incorrer em extrapolação dessas funções e agir como verdadeiro órgão legislativo. Se o fizer, não há nenhuma instância judiciária superior com poder para derrubar suas normas, senão o STF – tribunal cujos ministros compõem a maioria do próprio TSE, o que fragiliza a eficácia desse controle externo constitucional.
Não estamos falando apenas no mundo das hipóteses: agora em 2024, o TSE de fato agiu como legislador, editando resoluções nas quais criou unilateralmente obrigações que oneram – e muito – as plataformas, mesmo contrariando leis vigentes no Brasil (algo ilícito, porque leis aprovadas pelo Congresso estão acima de resoluções na hierarquia normativa).
Por esses motivos e outros, é óbvio que uma “sugestão” vinda de um agente do Estado com tamanhos poderes sobre os destinatários da mensagem não são, e não seriam jamais recebidos como, mera “sugestão”.
Não foi outro o entendimento da Justiça americana, que concedeu tutela restringindo a comunicação de órgãos de Estado americanos com plataformas de rede social. O fundamento foi que a Justiça considerou provável que esse tipo de “sugestão” violasse a Primeira Emenda americana, constituindo censura estatal dissimulada. “Sugestões” como essas, no caso do Twitter, foram reveladas justamente pelos Twitter Files americanos, os originais que inspiraram agora a sua edição brasileira.
O que é precupante, no caso do Brasil, é que, aqui, esse tipo de prática está vindo justamente da cúpula do Poder Judiciário, tornando improvável que a solução para esse problema venha desse poder.
Como diz a juíza Ludmila Lins Grilo, uma vez constatado que a violação do direito vem do poder Judiciário, isto inviabiliza, quase de imediato, soluções na esfera jurídica, restando, apenas, eventuais soluções políticas. Uma das soluções que se enquadram como “políticas” é a edição de lei pelo Congresso, disciplinando o assunto.
A este respeito, sou redator de um anteprojeto de Lei da Liberdade de Expressão no Brasil, e tomei o cuidado de incluir uma vedação à censura estatal indireta, utilizando redes sociais como intermediárias a pretexto de “sugestão”.
Espionagem forçada de cidadãos
Outro problema revelado no trecho que transcrevi é a ordem (e aqui, segundo os Twitter Files, foi ordem mesmo, sob ameaça de multa diária de R$ 50 mil) para que uma plataforma de rede social (no caso, o Twitter) fosse sitiada pelo Estado brasileiro, transformada em braço de seu aparato de repressão, espionando os cidadãos. Especificamente, que ela se tornasse fornecedora de dados sobre as estatísticas mensais de uso de determinadas hashtags políticas, além de fornecer dados privados de usuários que estivessem usando as hashtags.
Uma das hashtags cujo uso ao longo de 2021 o TSE queria monitorar era a hashtag #VotoDemocráticoAuditável. É preciso enfatizar o contexto do ano de 2021: naquele ano, foi votada pelo congresso uma proposta legislativa de instituir voto impresso no país. Qualquer que seja a opinião de alguém sobre a proposta, ninguém, à exceção de um defensor de ditadura, poderia querer cercear o direito de cidadãos de exercerem a sua voz na internet para pedir a aprovação de um projeto de lei da sua preferência. É o básico numa democracia.
É essa, entre outras questões, que tornam os Twitter Files também uma questão de liberdade de expressão, e não apenas uma questão de legalidade dos atos de agentes públicos.
Pesca probatória
Uma pessoa cínica poderia dizer que, por mais que possa ter havido ilegalidades na requisição, o ato judicial não foi de punir os cidadãos que usaram as hashtags, mas “apenas” investigá-los. Logo, não haveria problema.
Reconheço que não apenas os cínicos pensam desta maneira, porque as restrições aos poderes investigativos do Estado são, de fato, pouco intuitivas. Uma visão comum e equivocada é que “quem não deve não teme”, então o Estado deve ser livre para investigar quem quiser e quando quiser, pelos motivos que quiser.
Neste momento é preciso recuar e explicar a filosofia por trás do direito, de um modo que nem sempre é feito.
A nossa Constituição se preocupa em vários pontos com a proteção do sigilo dos cidadãos, e não é à toa. Não, o Estado não pode investigar quem ele quiser pelos motivos que quiser. É preciso sempre haver uma justa causa. Às vezes, esse requisito é considerado tão importante que, para garantir o seu cumprimento, proíbe-se que o agente investigador seja quem decide se há ou não justa causa. Em vez de ser feito apenas controle posterior, é feito, então, controle prévio: certas medidas de investigação só podem ser tomadas se, antes, houver autorização pelo Judiciário.
A preocupação não é à toa. Investigar cidadãos sem justa causa é o que se chama de “pesca probatória”: não há nenhum indício de ilícito, e primeiro se investiga o cidadão para depois encontrar algo para tentar incriminá-lo.
Não é preciso refletir muito para perceber que isso já é uma forma indireta de supressão da liberdade, mesmo para o cidadão que nunca praticou qualquer crime, porque expõe o alvo a riscos de consequências negativas, ainda que os fatos descobertos sejam lícitos.
Por exemplo, em 2017, quando foram divulgadas conversas telefônicas entre o jornalista Reinaldo Azevedo e a irmã do senador Aécio Neves, gravadas no contexto de investigação na Operação Lavajato, as conversas não continham nada de ilícito. No entanto, trouxeram gravíssimas consequências profissionais para o jornalista, por abalarem sua imagem perante o público, gerando sua saída de vários veículos. A Associação Brasileira de Imprensa acusou a PGR, que estava de posse das gravações, de divulgá-las propositalmente como forma de “intimidação e retaliações a jornalistas”, tese que o próprio Azevedo também defendeu. Ele era crítico da Lavajato. Ser investigado e ter dados privados expostos a agentes públicos sempre implica o risco de que dados vexatórios acabem expostos; outro exemplo hipotético poderia ser o vazamento de fotos íntimas.
Além disso, o fato de o cidadão só ter praticado coisas lícitas não impede que os investigadores interpretem erroneamente os mesmos atos como ilícitos (principalmente se houver ânimo persecutório). Existe ambiguidade no direito e até mesmo a possibilidade condenações injustas. Mesmo que haja a absolvição ao final, o processo em si já pode ter sido uma punição, com possibilidade de sujeição a diligências investigativas invasivas ou onerosas, o dano reputacional de ser considerado “investigado” ou “réu”, etc.
Mas e se a pesca probatória abusiva resultar em que fatos criminosos reais sejam descobertos, gerando punição do cidadão?
Nesse caso, é possível argumentar que nem por isso o processo punitivo resultante será plenamente legítimo, porque, na prática, a punição será pela conduta lícita do cidadão que originou a investigação (como subir hashtags). A punição subsequente terá sido mero pretexto.
Esse tipo de consideração é justamente o que faz a legislação chegar ao ponto de anular processos punitivos contra cidadãos que são de fato culpados da imputação, em razão dos vícios do procedimento.
Risco de aparelhamento do Estado por grupos políticos
Além de todas essas considerações, o quadro se torna ainda mais grave se se verificar que a pesca probatória é direcionada apenas contra os cidadãos de uma facção política específica dentro de uma comunidade política.
Nesse caso, o fenômeno assume caráter coletivo: pode haver consequências relevantes para o equilíbrio de poder. Determinado grupo que se torna alvo desproporcional de investigações sai prejudicado na disputa política.
Nesse caso, haverá violação também aos princípios da isonomia e da impessoalidade da Administração Pública, porque a estrutura do Estado estará sendo usada para promover os interesses de um grupo político em detrimento de outros, prejudicando a efetividade da possibilidade de alternância de poder e, portanto, o próprio regime democrático garantido pela Constituição.